sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Gloriosa Parvoice

Parece que todas as gerações têm o seu filme imbecil que supostamente explora as reacções menos inteligentes dos figurantes. Eu gramei “Os Deuses Devem estar Loucos”. Agora renova-se a tradição do ‘filme de apanhados’ com o estupidamente correcto “Borat: Aprender Cultura da America Para Fazer Benefício Glorioso à Nação do Cazaquistão”. Mal montado, mal encenado, sem graça, sem a espontaneidade e a irreverência de Aly G, autêntico lixo cujo êxito de bilheteira só poderá ser explicado pela gigantesca operação de propaganda montada ao redor do lançamento e da suposta polémica que o filme tem causado. Um ultraje, não aos americanos, mas ao bom gosto. Borat go home!

domingo, 26 de novembro de 2006

Rebelião

Não ando a dormir bem. Aponto causas genéticas. Nunca nenhum dos meus antepassados foi funcionário público. Sou o primeiro a degenar e agora sinto a revolta do corpo, a incompatibilidade do meu caótico ser espiritual e orgânico com a exemplaridade que a causa pública exige. Todos os meus avôs paternos e maternos foram negociantes de qualquer coisa, entregues a si próprios, às suas capacidades de improvisar a vida e alcançar o lucro. O meu avô paterno tinha uma exploração de suinicultura. Imagino a inconstância dos seus emocionantes dias: ontem um excelente negócio com a compra de uma vara, hoje outro com a venda de duas. Ontem um porco com peste suína, hoje a visita da veterinária boazona. E amanhã mais uma gloriosa matança. E o meu pai, terrorista nos tempos livres, saiu aos seus. Tinha uma mercearia colada com uma taberna, um homem para dois balcões, era obra! E agora eu, séculos e séculos de apuramento genético jogado à repartição pública, gerações e gerações de negociantes com habilidades secretas para se desenrascarem de horários e carimbos, até surgir eu, funcionário público, entregue vergonhosa e obrigatoriamente a um processo diário de desi-existência feito de rotinas incontornáveis que paulatinamente o dever, a hipoteca, as prestações, me obrigam a cumprir. Mas o corpo revolta-se, sinto-o instável, castiga-me, por enquanto não me deixa dormir, não sei o que virá a seguir às provações físicas que me inflige. O sacana aproveita a menor aragem fria dos corredores do metro para me fazer espirrar e pôr-me com frio o resto do dia. Aproveita qualquer pingo de chuva fria para me pôr a correr na direcção da farmácia mais próxima. Sofro de alergia crónica ao pó da cidade, ao escape dos autocarros, ao ar saturado do comboio em hora de ponta, alergia à realidade a que me fui entregando enquanto dela cada vez mais o corpo se quer rebelar. É certo que sinto o apelo pelo negócio, mas é uma certeza a minha absoluta falta de faro para grandes jogadas. Com a minha idade o meu pai já tinha tido um descapotável, dormido no Sheraton de Londres e assaltado um carro em Paris apenas para não passar a noite ao relento. Eu, amanhão, com sorte, se me conseguir lembrar a que horas passa o comboio, se ficar bem colocado na plataforma, mesmo num sitio onde a porta se abra e eu seja um dos primeiros a entrar, conseguirei um lugar sentado.

domingo, 28 de maio de 2006

Turisticonsumo

(da série ‘palavras que deviam existir’)
Andamos enganados acerca da sempre adiada viagem das nossas vidas. Andamos entretidos a sonhar com esses destinos de férias pret-a-porter formatados à medida dos sonhos bem comportados, daqueles ilustrados nos outdoors e nas montras das agências. Aquele mar azul ao mesmo tempo cálido e transparente, a areia branca que ao mesmo tempo não fica teimosamente entre os dedos dos pés, as palmeiras ao mesmo tempo frondosas cuja sombra nos protege do sol ao mesmo tempo inofensivo para a pele, e a companhia da mulher dos nossos sonhos, aquela ao mesmo tempo loura de biquini no cartaz… Tudo isto é entediante e ao mesmo tempo tudo isto é alucinante.
O que conta não é o prazer da viagem em si, a continuidade inerente à viagem de A a B. O que interessa é a finalidade, o que conta é o destino, o paraíso a prazo, a ostensiva pensão completa, encher os cartões de memória das máquinas e esvaziar depois à chegada as recordações empoladas aos proximos visitantes da agência de viagem. O que vale é a fartura de não sairmos do mesmo lugar emocional, empanturrados de extras num local completamente efémero mas com juros eternos.
A volta ao mundo nada significa quando comparada com a volta à vida que em vez de financiamento a crédito pede coragem a pronto. Estranho consumismo turístico o dos nossos dias, quando a grande viagem pode-nos sair de borla... O mais extraordinário dos destinos pode muito bem estar já ali ao virar da rua, na grande viagem ao quiosque da esquina, ou, por exemplo, ao Beco dos Toucinheiros, amanhã quando subirmos a rua, viagem épica onde um dia, tudo pode acontecer.

segunda-feira, 22 de maio de 2006

Teorias da conspiração

I - Os morangos com açúcar, as telenovelas da SIC, os passatempos do canal 1, o lixo generalizado das televisões generalistas, é estrategicamente depositado à hora a que um individuo chega a casa depois de mais um interminável dia de trabalho. A intenção é criar no individuo que chega a casa depois de mais um interminável dia do trabalho o desejo de emigrar para um país qualquer onde não se sinta tanto um individuo que chega a casa depois de mais um interminável dia de trabalho.

II - O esganiçamento com que os defensores da penalização do aborto esgrimem os seus argumentos válidos, deixa transparecer um complexo, um medo latente e reprimido. Causa-lhes desconforto imaginarem que poderiam ter sido eles, os nados abatidos, os abortos consumados. Nunca teriam portanto a oportunidade de estarem agora contra o aborto. Os outros fundamentalistas que pelo contrário esganiçadamente defendem o aborto, defendem-no assim porque sentem que se teria poupado muito trabalho, não teriam de estar agora para ali a ganir argumentos válidos.

III - No metro há pessoas contratadas pelos principais fabricantes de leitores de MP3 para terem diálogos como o que segue:
- O teu deixa-te corta-lhe as unhas ?
- Sim.
- O meu não!...
- Com ele não tenho problemas.
- Mas tu com o teu podes fazer o que quiseres, ele ainda é pequeno.
- Não tão pequeno quanto isso.
- Mas é mais pequeno que o meu.
- És um totó!
- Ah, ah, ah, ah…

IV - Há pessoas perdidas por toda a parte que estão absolutamente convencidas que, ao contrário da morte, conseguirão ir ao encontro do amor mais que uma vez na vida.