domingo, 26 de novembro de 2006

Rebelião

Não ando a dormir bem. Aponto causas genéticas. Nunca nenhum dos meus antepassados foi funcionário público. Sou o primeiro a degenar e agora sinto a revolta do corpo, a incompatibilidade do meu caótico ser espiritual e orgânico com a exemplaridade que a causa pública exige. Todos os meus avôs paternos e maternos foram negociantes de qualquer coisa, entregues a si próprios, às suas capacidades de improvisar a vida e alcançar o lucro. O meu avô paterno tinha uma exploração de suinicultura. Imagino a inconstância dos seus emocionantes dias: ontem um excelente negócio com a compra de uma vara, hoje outro com a venda de duas. Ontem um porco com peste suína, hoje a visita da veterinária boazona. E amanhã mais uma gloriosa matança. E o meu pai, terrorista nos tempos livres, saiu aos seus. Tinha uma mercearia colada com uma taberna, um homem para dois balcões, era obra! E agora eu, séculos e séculos de apuramento genético jogado à repartição pública, gerações e gerações de negociantes com habilidades secretas para se desenrascarem de horários e carimbos, até surgir eu, funcionário público, entregue vergonhosa e obrigatoriamente a um processo diário de desi-existência feito de rotinas incontornáveis que paulatinamente o dever, a hipoteca, as prestações, me obrigam a cumprir. Mas o corpo revolta-se, sinto-o instável, castiga-me, por enquanto não me deixa dormir, não sei o que virá a seguir às provações físicas que me inflige. O sacana aproveita a menor aragem fria dos corredores do metro para me fazer espirrar e pôr-me com frio o resto do dia. Aproveita qualquer pingo de chuva fria para me pôr a correr na direcção da farmácia mais próxima. Sofro de alergia crónica ao pó da cidade, ao escape dos autocarros, ao ar saturado do comboio em hora de ponta, alergia à realidade a que me fui entregando enquanto dela cada vez mais o corpo se quer rebelar. É certo que sinto o apelo pelo negócio, mas é uma certeza a minha absoluta falta de faro para grandes jogadas. Com a minha idade o meu pai já tinha tido um descapotável, dormido no Sheraton de Londres e assaltado um carro em Paris apenas para não passar a noite ao relento. Eu, amanhão, com sorte, se me conseguir lembrar a que horas passa o comboio, se ficar bem colocado na plataforma, mesmo num sitio onde a porta se abra e eu seja um dos primeiros a entrar, conseguirei um lugar sentado.