Hoje de manhã quando subo em direcção ao trabalho, na entrada de um prédio um sem abrigo dorme profundamente. A cena, inédita naquela rua, impressiona-me. Sem parar, com o olhar percorro todos os pormenores, todos os pertences mais ou menos espalhados ao seu redor. Pouco mais que nada, apenas um cobertor a mais dentro de um saco de plástico. Os metros seguintes são percorridos com lágrimas nos olhos. Não sei se com pena, se com medo. Pena do pobre diabo ou medo de me tornar assim, num sem abrigo porque a minha vida de fantasma parece presa por um fio tão frágil ao qual diariamente faço uma manutenção desesperada, que sinto, a qualquer momento algum pormenor me escapará…
Aproximo-me então do meu quiosque favorito. Já aqui falei na dupla que o habita, da tia e da sobrinha e o quão aprecio e venero esta ultima. Reparei ontem na aliança que trazia no dedo, enquanto falava comigo, de jornais, como de vez em quando e sempre falamos. Passava a mão pela cara, como nunca o fizera, mostrando a novidade, avisando com aquele brilho metálico a estrangular-lhe o dedo. Passei então a conversa dos jornais para as revistas, e pedi-lhe a Maxmen. Porque achei que ela nunca o poderia ter feito, porque sempre a imaginava com rapazinhos conflituosos, relacionamentos fugazes, condenados a viver apenas dias sem a paz que o verdadeiro amor encerra e só alguém que ama verdadeiramente pode experimentar. Decidi tirar um pouco da mascara de rectidão, de subtileza que lhe proporciono sempre. Perguntei-lhe logo quanto era, enquanto remexia já na carteira, para não receber troco, amuado, traído, eu que nunca lhe dou o dinheiro certo, para que sinta sempre o toque dos seus dedos sempre frios… Há alguém que a come, de noite, com todo o tempo da noite, esse tempo eterno. Que inveja, que raiva, que carteira velha tenho. Mostrei-lhe um pouco da minha natureza pervertida, pela primeira vez, uma revista masculina, um cheirinho, que pareceu não surpreender… Disse-me que já não tinha a deste mês, que amanhã, hoje portanto, sairia um novo número e que mo guardaria, a querida, tão querida, tão doce, como ela guarda sempre o “24 horas” à sexta feira. E é hoje, hoje que ela não está. Tento evitar a tia, velha senhora que decerto, sei que sim, já se apercebeu que nunca são as notícias do dia que me interessam. Tento passar ao largo, mas oiço-a, que a minha sobrinha deixou-lhe aqui a revista. Só a revista ? Que me interessa… Ah, é verdade, ia entretido nos meus pensamentos, os olhos ainda mal refeitos, fungo, é da constipação. E quer levar também o livro do Kamasutra ? Olhe são só mais 2 euros! Pode ser, ponha aí tudo dentro de um saco de plástico.
1 comentário:
belo texto.
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