quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Sempre que vou atrasado para o trabalho Deus Nosso Senhor castiga-me. Hoje no comboio à minha frente ia uma gaja que já conheço de vista de outras viagens do costume, o tipo de gaja de quarentas e tais onde já se notam os sinais das desesperantes tentativas que matinalmente faz antes de sair de casa para se parecer ainda uma gaja nova. Durante toda a viagem foi a tagarelar com outra gaja que ia ao lado, enquanto passava com a mão pelo cabelo e depois observava os dedos a um palmo da cara para verificar se traziam agarrado algum cabelo perdido. E traziam quase sempre. Por breves instantes fitava-os ficando com uma expressão vesga nos olhos, como que observando com detalhe quantos cabelos tinha arrancado, a cor, o número de série, etc. Depois, ensaiava com os dedos uma breve tentativa de fazer com os cabelos uma bola, que no fundo era mais como que um ritual de despedida, e deixava-os cair para o chão, que é como quem diz, para cima dos meus sapatos, porque eram os meus sapatos que estavam no espaço exíguo de chão que nos separava.
A imagem de montes de cabelos da gaja repousados caóticamente sobre os meus pés agoniou-me a viagem toda. Para ajudar à festa, ao meu lado ia um velho que quase ao mesmo ritmo com que a gaja arrancava cabelos do escalpe, escarrava para um lencinho branco que se ia tornando cada vez mais verde e que desdobrava e depois dobrava metódicamente para voltar a guardar e depois voltar a buscar ao bolso.
Quando senti o imenso alívio que foi sair daquele comboio, no caminho a pé para o trabalho, à minha frente ia uma gaja daquelas que ao andar junta os joelhos e caminha com a ponta dos pés à frente virados um para o outro. Deus Nosso Senhor tinha ainda de me fazer lembrar que nunca comi uma gaja assim. E bem que Ele sabe que não gostaria de morrer sem o fazer!

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