quinta-feira, 11 de janeiro de 2007
O cego de raiva
Um ceguinho com a sua bengalita de ceguinho na mão, caminha hesitantemente pelo passeio, aproximando-se do rebordo do mesmo, decidido a atravessar para o outro lado da rua. Espera pelo aviso sonoro do sinal verde para peões e com a sua bengalita lá começa a perscrutar caminho livre para avançar em segurança. Sente a presença à sua frente de um automóvel que ali está estacionado e, com a sua bengalita, começa então à cacetada ao capot do carro, enquanto vocifera furioso “estes cabrões estacionam em cima das passadeiras, filhos da puta, é sempre a mesma merda!!!” e por aí fora, chamando a atenção dos outros transeuntes. Um deles aproxima-se, agarra-o pelo braço e calmamente diz-lhe: “espere lá amigo que a passadeira não é aí”, encaminhando-o no bom caminho.A tendência natural das pessoas sem deficiências físicas visíveis é para considerar as outras, denominadas deficientes, como completos coitadinhos, pessoas que além das suas limitações físicas, são igualmente limitados no que toca a sentimentos tão normais como a arrogância e o mau feito. Vêem os deficientes sempre sob uma aureola de sensatez e resignada humildade que, como este episódio verídico atesta, não é verdade. Para mim, que me limitei a observar a cegada, foi uma experiência enriquecedora. Primeiro porque não era o dono do carro que ficou com o capot escavacado, depois porque pude testemunhar in loco um comportamento normalmente irascível que qualquer um pode ter se não estiver nos seus dias, protagonizado por uma pessoa portadora de deficiência física altamente incapacitante como é a cegueira. Qualquer deficiente tem todo o direito de perder as estribeiras, ser uma besta, ficar cego de raiva, como qualquer outro cidadão.
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