segunda-feira, 28 de maio de 2007

O comboio acabou de partir da primeira estação com não mais de meia duzia de passageiros dispersos naquela carruagem onde a paz e o silêncio matinal são quebrados pelo carpido que vem do banco de trás: alguém vai a fazer barulhos com a boca. Aquele tipo de som que se faz quando se mastiga algo que se cola aos dentes, tipo sugos ou caramelos. O enervante cagaçal prossegue e torna-se insuportável. Ponho-me a amaldiçoar o azar de, entre as oito carruagens, entre as suas centenas de bancos, ter escolhido precisamente aquele em que vai alguém atrás a mastigar de boca aberta. Desespero para que chegue a próxima estação, que a carruagem se encha de mais gente, de mais ruminantes se for preciso, mas barulho, ruído que dilua aquele som. O animal, sim, quero querer que se trata de um animal, rumina inconsciente, não se coibindo de ostensivamente mastigar de boca escancarada. Interrogo-me, que tipo de pessoa come caramelos a esta hora da manhã ? É nestes momentos que dou graças a nosso senhor por ele não me ter feito aceitar a proposta que um cigano uma vez me fez numa rua esconsa da baixa de Lisboa. Um revólver a funcionar a 100%, era de um policia, ainda com as balas e tudo, disse ele, que me seria vendido pela quantia de uns meros 100, primeiro, depois 80, e no fim, 50 euros. Não aceitei, ou melhor, o cigano não aceitou a minha proposta de 10 euros, de boa vontade, pois era o que tinha. Se calhar, agradeço então a nosso senhor ter feito com que o cigano não aceitasse. Eu sei que armado seria um verdadeiro perigo. Sinto-me mais seguro e tranquilo se andar desarmado. Agora mesmo, teria sacado do dito revolver e apontado a quem mastiga atrás de mim. Obviamente que dispararia sem a menor hesitação. Penso então a que pensamentos se entregará aquele desprezível ruminante, se eventualmente não lhe causará desconforto sentir alguém à sua frente, tão caladinho, tão compenetrado em pensamentos tão perversos. Imagino-lhe uma fusca no bolso, um revolver, tinha sido ele o transeunte seguinte, naquela tarde também atrás de mim, interpelado numa rua esconsa de Lisboa por um cigano, que lhe teria vendido a pistola do polícia por uns meros 9 euros. Chamem-lhe orgulho cigano, não sei, chamar-lhe-ia desespero, mas podia ter acontecido.
Aguardo apenas mais alguns segundos, até que o comboio pára e a carruagem se enche um pouco mais de passageiros e de musical e aliviante barulho. Acho que a isto se chama tolerância.

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